A ESCOLHA
Nem parecia ser um avesso da vida, mas com
certeza não deveria ser nada extraordinariamente comum...
Ela estava na flor da idade, estudava, mas
não era sua praia. As aulas estavam presentes, mais por pressão dos pais.
Cabulava. Por conta disso sempre raposava. Sua predileção era andar de festa em
dança como dona Constança, farrear nos regalórios com as amigas nos finais de
semana.
Mais um e ela combina com sua melhor amiga
de infância Leila para outra noitada. Balada era a mais badalada dos encontros:
ti-ti-tis, lero-leros, conversas pra boi dormir, azarações, flertes...
Os pais de Maria sempre conversaram com
ela a respeito de namoro que porventura viesse ter. Era uma espécie de
liberdade vigiada. Maria, portanto, era uma jovem bem informada...
Outro fim de semana as duas novamente juntas.
Curtem muito, dançam, bebem. Maria beija muito o namoradinho e após horas de
agitação todos ficam exaustos. Param para descansar. Blá-blá-blás e no ocloque vão
ficando para trás as cinzas das horas. Decidem ir embora. Maria despede-se da
amiga e lança uma xeta. Nesse dia elas nem ouviram o amiudar dos galos.
Na escola, de praxe, o ramerrame: trocaram
figurinhas, sobre assuntos diversos... esse é o ritmo por um bom tempo.
Aconteceu que um dia antes do início de
uma aula de matemática, no pátio, Maria começa a sofrer um mal-estar, um leve
tonteamento. Abaixa a cabeça. Sua aparência muda. Uma amiga lhe toca ― tap! tap!
― e pergunta:
― O que está acontecendo, Maria? Tudo bem?
― Oi, amiga! Estou indisposta... um pouco
tonta, sei lá... ― parecia que o destino lhe sombreava um fadário. Rapidamente
a amiga chama a diretora:
― Diretora, a Maria está passando mal! ―
ela se aproxima:
― Maria, o que você tem?
― De repente fiquei zonza...
― Venha até a secretaria! Vou te dar um
remédio!
― Sim! ― a diretora a mata-cavalo:
― Deite aqui, Maria! Vou preparar uma
mezinha pra você! ― Maria se acomoda. A diretora escabreada, com uma pulga
atrás da orelha pela experiência da vida, desconfia do que seja o mal-estar e
diz:
― Maria, vá ao médico fazer um exame para
ver o que você tem!
― Não precisa, não, diretora! Já estou
melhorando! ― Sem intenção de meter os olhos a dentro, insiste:
― Menina, vai, sim! Todos nós, precisamos
de nos cuidar!
― Tudo bem, amanhã irei!
― Vá logo hoje! ― mesmo não sendo carunchenta,
mas por ter idade de ser sua avó, Maria obedece:
― Eu vou!
Ao chegar em casa Maria relata à mãe sobre
o ocorrido. Ela também de orelha em pé, desconfia do amunhecar da filha, mas
fica na dela... Já recuperada Maria deixa mesmo para ir ao médico no outro dia.
― Cocorocóóóó...
― Um galo canta.
― Cocorocóóóó...
― outro galo.
― Cocorocóóóó...
― e mais outro e vários galos vão unindo seus cantos até tecerem a manhã... e
raia o dia.
Uaaaah! ― Maria acorda! ― ahhhh! ― espreguiça, levanta da cama, toma o
banho e se prepara para sair. Com muito vigor, vivacidade de uma sereia ao
espelho, maquila-se com ruge e batom. Despede-se da mãe e vai ao consultório.
Tudo segue normalmente. O resultado do exame só daqui a três dias.
Chega o dia. Maria retorna ao consultório.
O
médico lhe entrega o envelope e fica na expectativa... Ela o abre, lê e:
― Positivo?! ― continua lendo e: ― O que é
isso, doutor? Estou grávida?! ― pergunta assustada.
― Sim! Meus parabéns! Conte para o
maridão! Ele vai gostar!
― Mmmmas... ― titubeia ― E agora? Nem sei
qual será a reação dele... ― fica preocupada.
― Ah, deixe disso, futura mamãe!!! Uma
criança sempre é alegria no lar! É esperança de renovação para esse mundo!
― Eu sei, doutor... ― não entra em
detalhes. ― Preciso contar para minha mãe. Até mais e muito obrigada! ― no meio
do caminho aparece uma amiga:
― Oi, amiga! Tudo bem?
― Sim, tudo! E você? Qual foi o resultado
do exame? O que você tem?
― Bem... eu não tenho nada...
― Graças a Deus, né?
― Sim, graças a Deus... mas... o resultado
revelou que estou grávida!
― Nossa! Que legal, amiga! Parabéns!
― Poxa, amiga, você me parabeniza?! Eu sei
que um filho é bacana etc. e tal... só que... ter um filho agora? Não planejei
nada!
― Maria! Essa criança não pediu pra vir ao
mundo! O que aconteceu foi por descuido... e descuido de vocês... agora é
esperar pela criança com todo o amor do mundo! Pense em cuidar dele!
― Eu sei! Não precisa ralhar, né?
― Não estou ralhando... tua família e teu
namorado já sabem da novidade? Eles vão gostar!
― Ninguém sabe de nada ainda! Contarei pra
minha mãe agora, depois para o pai do bebê... não sei qual será a reação
deles... tô pensando e me preparando para falar!
― Ah, com certeza eles serão avós e pai
coruja!
― Sei não... bem... vou indo e depois nos
vemos na aula! ― agora ela encontra com o namorado:
― Oi, amor! ― Smac! ― deu um beijo nele e foi logo falando: ― tenho uma surpresa
pra te contar!
― Oba! ― A unhas de cavalo: ― Conte logo,
vai!
― Calma! Pra quê tanta pressa? Sossega o
pito! Kkkkkkkk ― Ele amolava o queixo como se espera o início de um rega-bofe:
― Estou calmando...
― Vou fazer uma viagem!
― Legal! Para onde?
― Ainda não decidi... ― Ela preferiu não
contar sobre a gravidez nem para ele e nem para a família, por enquanto.
***
O tempo foi passando, a barriga foi
crescendo e Maria foi escondendo-a. Todavia, chegou um momento em que ela não
podia mais apertar a barriga: já estava ficando incomodada e também poderia
machucar o bebê! Foi aí que ela decidiu falar primeiro para o seu namorado. Foi
num encontro da balada:
― Querido, preciso de te contar um assunto
muito importante!
― Diga, meu amor!
― Está preparado?
―
Claro! Tudo que vem de você é bom!
― Pois bem... estou grávida! Você será
papai! ― como não poderia ser diferente, ele toma um susto:
― Oxe! Como assim “serei papai”?
― Isso mesmo que você ouviu! Você será
papai!
― Poxa, amor! Nem planejamos ter filhos...
― Eu sei disso! Só que aconteceu... eu
estava para te contar há algum tempo, mas preferi adiar! ― ela o olha e ele... só
pensamentos.
― Não é isso, meu amor! Gostei sim! Você
sabe que eu te amo muito! Apenas preferiria que tivéssemos o bebê mais adiante!
Nem moramos juntos ainda...
― Isso é o de menos! Vamos morar juntos,
então?!
― Só me dê um tempo para ajeitar minha
situação, tá bom? ― ele estava desempregado. Por conta disso amarrou um bode.
Despedem-se.
Maria conta a gravidez aos pais e que seu
namorado assumirá a paternidade. Seus pais não metem o nariz na vida deles, o
que deixou Maria surpresa.
O casal passa a morar junto e esperam a
chegada da cegonha.
Já bem bacu e próxima de dar à luz, Maria
sente fortes contrações. Paulo está em casa. Ela o avisa:
― Amor, estou com dores! Acho que o neném
irá nascer! Leva-me para o hospital!
― Claro! Como eu já havia combinado com o
Tito sobre o carro falarei com ele agora! Ele pega o carro emprestado e saem.
Chegam ao hospital. Ela sente as dores do parto. As dores se intensificam.
Inicia-se o parto. A criança nasce: é um menino e chamaram-lhe Benjamin.
Mão por baixo, mão por cima, Maria trata
do filho e continua a estudar. A criança é benquerida por todos. É o xodó da
família de ambos. A vida segue...
Eles levam a vida de uma maneira simples.
Apenas Paulo trabalha fora, pois já conseguira um trampo. Biscates já são águas
passadas.
Já transcorre algum tempo e Benjamin já
está grandinho, perto de completar um ano. Anda e tem alguns dentinhos e suplantou
os gu-gu-dá-dás e a língua de trapos
e botava corpo mirim.
Novamente Maria começa a ter enjoos e os
sintomas semelhantes que tivera na primeira gravidez. Encabulada retorna ao
médico:
― Doutor, sinto os mesmos sintomas que
tive antes da gestação! O senhor precisa me ajudar! Parece que estou grávida
novamente! Pelo fato de meu bebê ainda não ter um ano de idade não quero outro
filho em um espaço de tempo tão curto! Além do mais
minhas condições financeiras... Cuidei-me, mas... ― deu à língua numa taralhada
que neste dia colocou qualquer desses animais considerados tagarelas: cega-rega,
gralha, matraca, papagaio, patativa, no chinelo. O doutor ouvindo a papeada e
achando até graça, de chofre deu-lhe uma freada:
― Muito bem... O que você quer que eu
faça? ― Maria meio que inebriada responde:
― Vejo que a única solução será interromper
esta gravidez e conto com a sua ajuda do senhor! ― Ele então pensou um pouco e disse
para a Maria:
― Acho que tenho um método melhor para
solucionar o problema!!! ― Maria fica contente e se afoba:
― Sério, doutor?
― Sim, senhora!
― Então diga, diga doutor! Como o senhor
me ajudará? ― ele continua:
― E é menos perigoso para você! ― Maria
sorriu, acreditando que o médico atenderia a seu pedido... Ele completou a
sangue-frio:
― Veja bem, Maria... para não ter de ficar
com dois bebês de uma vez, em tão curto espaço de tempo, vamos matar este que
está em seus braços! Assim, você poderá descansar para ter o outro! Se vamos
matar, não há diferença entre um e outro, não é mesmo?... Até porque sacrificar
este que você tem nos braços é mais fácil e ainda nem correrá risco de morte…
podemos fazer isso sem tir-te nem guar-te! Que tal? Topas?
Maria se apavora, toma um susto, quase cai
e na mesma hora retruca:
― Que isso, doutor! Pelamordedeus! O
senhor está maluco? O senhor é médico! Tem a obrigação e a missão de salvar
vidas e não de propor a morte!
― E você é mãe, geradora de vida! Mãe pode
pedir ajuda para assassinar uma vida? E agora?
― O senhor está maluco!?
― Eu maluco?! Mas você não quer fazer aborto?
― Sim, quero! Mas não matar um filho!!!
― Mas aborto é matar um filho!!!
― Que isso!? Não posso fazer uma
barbaridade dessas! Matar o Benjamim! Que horror! Matar uma criança é um crime!
Gostamos muito do Benjamin! ― Foi aí que o doutor queria chegar:
― Por isso que te sugeri... pensei igual a
você, Maria! Entretanto, me pareceu tão convencida disso, que por um momento
pensei em “ajudá-la!” Não entendo o espanto! ― o médico estava testando o juízo
de valor de Maria...
― Não! Nada disso! Eu amo meu filho! Só
quero o bem dele!
― Estou apenas oferecendo uma proposta ...
Além do mais... pense bem... se você fizer o aborto... você terá uma grande
possibilidade de morrer, sabia? Que tal? Faça a escolha!
― Nem morta! Não quero fazer escolha
nenhuma! Quero viver e quero ter meus filhos com muita saúde!... ― o doutor
sorriu e, depois de algumas considerações, viu que a sua lição surtira efeito. É
claro que ele queria matar o Benjamin, apenas fez isso como provocação, um
teste para ver a reação de Maria. Ele sabia que Maria não quereria fazer essa
escolha absurda; objetivava convencê-la perceber que não há menor diferença
entre matar a criança que nasceu ou matar uma ainda por vir, mas já viva no
seio materno, ao dizer que o crime é exatamente o mesmo.
Maria aprendeu a lição! Agradeceu ao
doutor a lição de vida que foi na realidade um puxão de orelha. A partir desse
momento ela amou tanto Benjamin quanto o futuro filho que viria.
Wagner Azevedo Pereira
O conto está da página 306 a 310 do livro:
Adentre-me: o almanaque do suspense. / Vários autores ; organizado por
Érica de Oliveira e João Paulo Hergesel. – Alumínio, SP : Jogo de Palavras,
2019.
316 p. ; 18 x 25 cm
ISBN: 978-65-80097-30-2
e-book
https://docs.wixstatic.com/ugd/8181f9_6fc080ea1bee44ca98cb2b002f134d88.pdf
livro físico disponível no site:
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